Além do véu.


Aos insetos que se alimentarão das frias carnes do meu cadáver, dedico a vocês estas memórias pós-morte. 

Que destino cruel é este? Privado da vida e ter o corpo reduzido a pó pela terra. Mas talvez seja essa a ordem natural das coisas, o ciclo da vida e da morte, a constante transformação que nos torna parte do mundo que nos rodeia.

Enquanto vivo, nunca pensei que acabaria assim, nem sequer pensei que acabaria. Maravilhava-me com o que havia de belo no mundo. Imaginava um mundo perfeito, sem dor, sem sofrimento, sem morte. Mas a vida não é assim, e a morte chegou para mim como um fim inevitável.

Agora, como um espectro solitário, contemplo o mundo dos vivos. Vejo a beleza da natureza, o amor e a felicidade que ainda existem entre os homens. Mas também vejo a dor e a tristeza, a ganância e a violência. E sinto uma melancolia profunda, uma saudade dos tempos em que eu também fazia parte desse mundo.

Talvez seja esta a sina dos mortos: observar o mundo dos vivos, sem poder interagir com ele. Ser uma lembrança distante, uma memória que se desvanece com o tempo.
Onde sou lembrado em apenas duas datas do ano, aniversariamente, quando faço anos que nasci, quando faço anos que morri. Duas vezes no ano pensam em mim, duas vezes no ano suspiram por mim, e uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em mim. 

Dedico estas memórias aos insetos que se alimentarão das frias carnes do meu cadáver, do sangue amargo com gosto metálico, dedico como uma última homenagem à vida que eu já tive.

Inspiração literária: Machado de Assis.

Comentários

Postagens mais visitadas